Cidadania: Um Exercício Diário

Como não sou uma pessoa mal educada, frequentemente esqueço que elas existem. Como humana e civilizada, eu aprendi desde muito nova  minha responsabilidade como pedestre. Respeitar o sinal, atravessar na faixa, olhar para os lados, enfim, o básico… O que não quer dizer que eu sempre respeite essas regras, mas que tenho consciência, quando as infrinjo, que se algo acontecer comigo, a culpa provavelmente será minha.

Frequentemente ocorrem acidentes entre pedestres, ciclistas, motoqueiros e carros de passeio, ônibus ou caminhões. Quando acontece algo desse tipo eu automaticamente acarreto a culpa ao maior “agressor”, que, nesse caso, é o veículo de grande porte. Só não condeno o motorista quando a apuração do caso prova que ele não teve culpa… O interessante é que quase sempre essas histórias somem da mídia antes de responderem quem atravessou o caminho de quem. E no noticiamento do fato recente, o motorista acaba ficando estigmatizado pela fatalidade.

Por esses dias, eu e minha mãe atravessávamos na faixa com o sinal aberto para os pedestres. Íamos do lado que havia ciclovia, para o lado da faixa dos ônibus. Eu cheguei a calçada primeiro e ela logo atrás de mim. O que eu não percebi (e não esperava) era um ciclista que vinha se espremendo, em movimento e alta velocidade, entre o meio fio e os carros parados no sinal. Não satisfeito em estar do lado oposto à ciclovia e em quase atropelar minha mãe, ele ainda berrou no ouvido dela ao passar para que ela saísse do caminho.

Ela acabou respondendo e ele não gostou do fato dela ter reagido a seu atrevimento. Então, deu meia volta com a bicicleta e resolveu comprar briga… A rua toda parou para olhar, mas naturalmente ninguém fez nada, afinal, estamos no Brasil. Talvez, mais dia, menos dia, esse indivíduo acabe atropelado por aí, possivelmente por culpa dele mesmo, e é provável que essa se torne mais uma situação em que o motorista acaba, aos olhos do público, como o culpado.

Como jornalista, sou compelida a buscar a verdade, os dois lados da história, antes de ir acender uma vela no local do ocorrido pela alma do pobre vitimado. Mas como humana, sou automaticamente levada a acreditar que o galho quebrado é o que foi prejudicado, e nem sempre é esse o caso. Estou falando sobre mim, mas sei que muitos por aí acabam fazendo o mesmo.

Precisamos perder esse hábito e nos reeducarmos não só como pedestres, ciclistas e motoristas, mas principalmente, como cidadãos. Precisamos entender a nossa responsabilidade diante de todas as situações, do mundo, das nossas vidas e da vida daqueles que nos cercam. Só assim poderemos começar a construir uma nação. Por enquanto, somos só um bando de gente existindo no mesmo pedaço de chão…

Quem tem Tinder, tem medo.

Quem tem Tinder, tem medo.

Pergunte a qualquer um que tenha uma conta no aplicativo: é comum sentir receio ao criar um perfil com a sua foto, muitas vezes linkado ao Facebook, e não imaginar quem vai passar pela sua página nesse cardápio humano; Uma pessoa com a qual você cortou relações, um(a) ex qualquer coisa, amigos do(a) ex qualquer coisa, uma pessoa para a qual você se declarou morta, mas que você sabe que te stalkeia, e incontáveis outras desequilibradas e com caráter duvidoso. Dependendo também de como a sua mente funciona, fica impossível não começar a imaginar alguém que você detesta dando match em outro alguém que te fez muito mal, e prontamente visualizar a cena dessas duas pessoas terríveis sendo felizes juntas…

Poucas coisas no mundo são tão ruins quanto ver gente que não presta se refastelando na vida, e uma delas pode ser a experiência de tentar formar um vínculo com alguém 100% estranho estando atrás de um aparelho eletrônico. Sou muito liberal com algumas coisas, mas o Tinder traz a tona o conservadorismo que há em mim. Constatei que não gosto da dinâmica do serviço e do comportamento geral por lá. O aplicativo fornece seu nome e idade, local de trabalho e estudo, espaço para 6 ou 7 fotos e 500 caracteres caso você deseje colocar alguma descrição. São inúmeras as formas para julgar alguém num ambiente desses. Embora o que esteja exposto para primeiro impacto seja bastante restrito, tais informações acabam sendo marcantes pra alguém que, como eu, usa repelente a base de ceticismo quando tem que lidar com o desconhecido.

Depois de determinada idade, que varia de pessoa para pessoa, ficamos cheios de manias… Não da mais para aturar certas coisas, nem se misturar com todo tipo de gente. Passamos a utilizar filtros cuja exigência cresce de acordo com nosso amadurecimento, objetivos, decepções e gostos pessoais. Não é mais tão simples querer fazer parte da vida de alguém e deixar que esse alguém faça parte da sua também. Existem requisitos a serem preenchidos… A primeira impressão sempre vem pela foto de capa. Ali já da para saber se vale a pena ou não abrir o perfil para ver um pouco mais. Passo direto por gente na praia, cachoeira, no futebol, fazendo trilha, esportes radicais e naquelas muvucas sociais. Não tenho nada em comum com alguém que tem essas atividades como prazeres primários…

Passada essa fase da triagem, chegamos ao “sobre”, e aí o que pode parecer puro preconceito reflete, na verdade, um senso de autopreservação muito grande. Se tem WhatsApp publicado e/ou está pedindo seguidores no Snapchat/Instagram? Passo. Expressa apoio/uso de drogas, dependência alcoólica e/ou fanatismos? Passo. Erros de português, concordância, falta de coerência e frases obsoletas tipo: Foco, força e fé – Deus no comando sempre – Vem que no caminho eu te explico? Passo! Eu me conheço bem, não quero contato com quem que se expõe tanto, com alguém que da tanto valor aos likes e follows da vida online, com vícios que desaprovo, com déficits difíceis para um jornalista engolir, e alguém incapaz de se expressar com as próprias palavras em menos de 500 caracteres.

Se uma amizade assim eventualmente surgir será naturalmente, por contato direto, nunca por uma busca online, e o que faz diferença nesse caso é justamente a questão de se tratar de uma busca. É muito diferente entrar na vida de alguém por ação do destino e procurar fazer parte da vida de alguém através de um meio digital. Na internet, a avaliação se torna mais criteriosa pois ela grita que, se tudo der errado para você, a culpa é sua. Se foi algo que você mesmo procurou, e além de procurar, permitiu, você só tem a si mesmo para responsabilizar por qualquer cilada na qual venha a se meter. É provável que você justifique seu sofrimento com a transgressão alheia e sinta pena de si mesmo por ter sido sacaneado, mas não é nada fácil admitir que talvez você esteja passando por algo desagradável por ter sido permissivo e inconsequente.

Para evitar tudo isso eu antecipo possibilidades, não faço nada tomando por garantia a certeza. Meses atrás uma amiga me convenceu a abrir uma conta no Tinder. Ela contava regularmente histórias divertidas com pessoas legais que encontrou através do app. Lá pelo vigésimo sétimo relato de pessoa incrível, resolvi arriscar. Essa experiência serviu mais como autoavaliação crítica e estudo antropológico, do que realmente uma forma de conhecer gente interessante, embora eu tenha conhecido uma ou duas. Me vi diante de desafios morais ao utilizar o aplicativo, especialmente quando meu superpoder de Overthink¹ entrava em ação. Se eu começasse a conversar com alguém que diz que não se diverte sem bebida, meu superpoder era acionado… Ele me colocava num Flashforward² e me fazia visualizar um futuro que ainda era apenas uma possibilidade.

Nesse futuro imaginário nós éramos amigos, e essa pessoa que não se divertia sem bebida há muito já se tornara um alcoólatra. Ao voltar para o presente, instantaneamente surgiam as perguntas: Vale a pena? Vale a pena abrir minha vida para essa pessoa, que já se mostra bastante problemática, me importar com ela, para mais tarde ter que lidar com isso? Vale a pena arriscar perder uma amizade caso a pessoa não admita que precisa se tratar? Vale arriscar me tornar vítima de qualquer insanidade temporária causada pela mistura perigosa do meu amigo? E após pensar em muitas mais perguntas como essas, o meu interesse pela pessoa e em ter qualquer tipo de envolvimento com ela caíam por terra.

Todos temos bagagem. Todos temos qualidades, defeitos e vícios; Fantasmas e coisas mal resolvidas, mas algumas são mais graves e pesadas que outras, e tem coisas com as quais não vale a pena lidar. É horrível pensar em deixar alguém de lado por sua bagagem, mas quando você admite que existe uma possibilidade de futuro, por menor que seja, você precisa considerar que, como amigo ou como algo mais, os problemas dela (dependendo de quais forem) podem te afetar, e você já tem problemas suficientes com os quais lidar. Qualquer relacionamento exige troca, apoio… É praticamente impossível não se envolver nos dilemas de alguém por quem você tem grande estima, e eu costumo ter bastante pelos meus.

É natural do ser humano ter medo de não ser amado, medo de ficar sozinho. Acredito que ninguém que inicia a formação de um vínculo imagina o seu fim, sexo casual e contatos profissionais não se enquadrariam nesse contexto de vínculo. Acredito que ninguém idealiza uma amizade problemática, com prazo de validade… Ninguém quer amigos para curtir sexta feira a noite e com os quais não se pode contar para nada além disso, nem deseja se apegar a alguém e depois ver essa pessoa ir embora, por qualquer que seja o motivo… A ideia que as relações passam é que serão sólidas e eternas, mas conforme essa inocência é perdida, elas se mostram frágeis. Isso também é natural do ser humano, e já que as coisas acontecem assim, seja no Tinder, na vida real ou virtual, não custa nada ter prudência antes de deixar alguém entrar no seu mundo.

Não sei vocês, mas eu prefiro não ter que me despedir de ninguém.
E se quem tem Tinder não tem medo, acho que deveria começar a ter…

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¹ Overthink: ato de pensar demais.

² Flashforward: é a interrupção de uma sequência cronológica narrativa, uma forma de apresentar um momento futuro.

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