Quem tem Tinder, tem medo.

Quem tem Tinder, tem medo.

Pergunte a qualquer um que tenha uma conta no aplicativo: é comum sentir receio ao criar um perfil com a sua foto, muitas vezes linkado ao Facebook, e não imaginar quem vai passar pela sua página nesse cardápio humano; Uma pessoa com a qual você cortou relações, um(a) ex qualquer coisa, amigos do(a) ex qualquer coisa, uma pessoa para a qual você se declarou morta, mas que você sabe que te stalkeia, e incontáveis outras desequilibradas e com caráter duvidoso. Dependendo também de como a sua mente funciona, fica impossível não começar a imaginar alguém que você detesta dando match em outro alguém que te fez muito mal, e prontamente visualizar a cena dessas duas pessoas terríveis sendo felizes juntas…

Poucas coisas no mundo são tão ruins quanto ver gente que não presta se refastelando na vida, e uma delas pode ser a experiência de tentar formar um vínculo com alguém 100% estranho estando atrás de um aparelho eletrônico. Sou muito liberal com algumas coisas, mas o Tinder traz a tona o conservadorismo que há em mim. Constatei que não gosto da dinâmica do serviço e do comportamento geral por lá. O aplicativo fornece seu nome e idade, local de trabalho e estudo, espaço para 6 ou 7 fotos e 500 caracteres caso você deseje colocar alguma descrição. São inúmeras as formas para julgar alguém num ambiente desses. Embora o que esteja exposto para primeiro impacto seja bastante restrito, tais informações acabam sendo marcantes pra alguém que, como eu, usa repelente a base de ceticismo quando tem que lidar com o desconhecido.

Depois de determinada idade, que varia de pessoa para pessoa, ficamos cheios de manias… Não da mais para aturar certas coisas, nem se misturar com todo tipo de gente. Passamos a utilizar filtros cuja exigência cresce de acordo com nosso amadurecimento, objetivos, decepções e gostos pessoais. Não é mais tão simples querer fazer parte da vida de alguém e deixar que esse alguém faça parte da sua também. Existem requisitos a serem preenchidos… A primeira impressão sempre vem pela foto de capa. Ali já da para saber se vale a pena ou não abrir o perfil para ver um pouco mais. Passo direto por gente na praia, cachoeira, no futebol, fazendo trilha, esportes radicais e naquelas muvucas sociais. Não tenho nada em comum com alguém que tem essas atividades como prazeres primários…

Passada essa fase da triagem, chegamos ao “sobre”, e aí o que pode parecer puro preconceito reflete, na verdade, um senso de autopreservação muito grande. Se tem WhatsApp publicado e/ou está pedindo seguidores no Snapchat/Instagram? Passo. Expressa apoio/uso de drogas, dependência alcoólica e/ou fanatismos? Passo. Erros de português, concordância, falta de coerência e frases obsoletas tipo: Foco, força e fé – Deus no comando sempre – Vem que no caminho eu te explico? Passo! Eu me conheço bem, não quero contato com quem que se expõe tanto, com alguém que da tanto valor aos likes e follows da vida online, com vícios que desaprovo, com déficits difíceis para um jornalista engolir, e alguém incapaz de se expressar com as próprias palavras em menos de 500 caracteres.

Se uma amizade assim eventualmente surgir será naturalmente, por contato direto, nunca por uma busca online, e o que faz diferença nesse caso é justamente a questão de se tratar de uma busca. É muito diferente entrar na vida de alguém por ação do destino e procurar fazer parte da vida de alguém através de um meio digital. Na internet, a avaliação se torna mais criteriosa pois ela grita que, se tudo der errado para você, a culpa é sua. Se foi algo que você mesmo procurou, e além de procurar, permitiu, você só tem a si mesmo para responsabilizar por qualquer cilada na qual venha a se meter. É provável que você justifique seu sofrimento com a transgressão alheia e sinta pena de si mesmo por ter sido sacaneado, mas não é nada fácil admitir que talvez você esteja passando por algo desagradável por ter sido permissivo e inconsequente.

Para evitar tudo isso eu antecipo possibilidades, não faço nada tomando por garantia a certeza. Meses atrás uma amiga me convenceu a abrir uma conta no Tinder. Ela contava regularmente histórias divertidas com pessoas legais que encontrou através do app. Lá pelo vigésimo sétimo relato de pessoa incrível, resolvi arriscar. Essa experiência serviu mais como autoavaliação crítica e estudo antropológico, do que realmente uma forma de conhecer gente interessante, embora eu tenha conhecido uma ou duas. Me vi diante de desafios morais ao utilizar o aplicativo, especialmente quando meu superpoder de Overthink¹ entrava em ação. Se eu começasse a conversar com alguém que diz que não se diverte sem bebida, meu superpoder era acionado… Ele me colocava num Flashforward² e me fazia visualizar um futuro que ainda era apenas uma possibilidade.

Nesse futuro imaginário nós éramos amigos, e essa pessoa que não se divertia sem bebida há muito já se tornara um alcoólatra. Ao voltar para o presente, instantaneamente surgiam as perguntas: Vale a pena? Vale a pena abrir minha vida para essa pessoa, que já se mostra bastante problemática, me importar com ela, para mais tarde ter que lidar com isso? Vale a pena arriscar perder uma amizade caso a pessoa não admita que precisa se tratar? Vale arriscar me tornar vítima de qualquer insanidade temporária causada pela mistura perigosa do meu amigo? E após pensar em muitas mais perguntas como essas, o meu interesse pela pessoa e em ter qualquer tipo de envolvimento com ela caíam por terra.

Todos temos bagagem. Todos temos qualidades, defeitos e vícios; Fantasmas e coisas mal resolvidas, mas algumas são mais graves e pesadas que outras, e tem coisas com as quais não vale a pena lidar. É horrível pensar em deixar alguém de lado por sua bagagem, mas quando você admite que existe uma possibilidade de futuro, por menor que seja, você precisa considerar que, como amigo ou como algo mais, os problemas dela (dependendo de quais forem) podem te afetar, e você já tem problemas suficientes com os quais lidar. Qualquer relacionamento exige troca, apoio… É praticamente impossível não se envolver nos dilemas de alguém por quem você tem grande estima, e eu costumo ter bastante pelos meus.

É natural do ser humano ter medo de não ser amado, medo de ficar sozinho. Acredito que ninguém que inicia a formação de um vínculo imagina o seu fim, sexo casual e contatos profissionais não se enquadrariam nesse contexto de vínculo. Acredito que ninguém idealiza uma amizade problemática, com prazo de validade… Ninguém quer amigos para curtir sexta feira a noite e com os quais não se pode contar para nada além disso, nem deseja se apegar a alguém e depois ver essa pessoa ir embora, por qualquer que seja o motivo… A ideia que as relações passam é que serão sólidas e eternas, mas conforme essa inocência é perdida, elas se mostram frágeis. Isso também é natural do ser humano, e já que as coisas acontecem assim, seja no Tinder, na vida real ou virtual, não custa nada ter prudência antes de deixar alguém entrar no seu mundo.

Não sei vocês, mas eu prefiro não ter que me despedir de ninguém.
E se quem tem Tinder não tem medo, acho que deveria começar a ter…

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¹ Overthink: ato de pensar demais.

² Flashforward: é a interrupção de uma sequência cronológica narrativa, uma forma de apresentar um momento futuro.

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O Limite da Amizade

O Limite da Amizade

Certa vez na faculdade um professor designou um trabalho extremamente chato para fim de período. Tratava-se do fichamento de uma das obras literárias mais importantes da história da filosofia e a principal de Aristóteles, Ética a Nicômaco.

Por ter esse amor à sabedoria considerei uma leitura excelente, mas ter que interrompê-la constantemente para realizar o fichamento tornou a tarefa desagradável. Agora – dois anos mais tarde -, dando uma segunda olhada no meu trabalho, esbarrei em um tópico que chamou minha atenção. Nele surge o questionamento:

Uma amizade deve chegar ao fim quando um dos amigos muda de caráter?

Faz sentido dizer que na sociedade atual existe de tudo, desde pessoas que descartam amizades e relacionamentos com a mesma rapidez com que fazem a digestão, até pessoas que insistem em amizades e relacionamentos falidos pela familiaridade e pelo apego.

Logo após o questionamento Aristóteles explica:

Se um bom homem se torna amigo de alguém no pressuposto de que essa pessoa é boa, mas acaba se tornando má, ele não deve imediatamente romper a amizade. Primeiro, deve tentar ajudar o amigo corrigir seu caráter.

Em prol dessa tentativa de dar ao meu amigo a chance de mostrar ser quem eu conheci e amei, acabei ultrapassando o limite do aceitável. Por meses me forcei a permitir que essas pessoas que me fizeram mal continuassem recebendo minha atenção; Ao minimizar os erros com pensamentos como “foi só uma mancada, é burrice me afastar por causa desse deslize”, descobri que burrice mesmo foi mantê-las por tanto tempo na minha vida, dando oportunidade para que cometessem diversas outras gafes, tornando nossa convivência um aborrecimento constante.

Demorei a abrir mão da familiaridade e do apego para enxergar que aquela pessoa com quem eu estava insistindo em ter um relacionamento não era o amigo que fiz anos atrás. Foi necessária muita força para cortar esses laços e tentar fazer isso da forma menos danosa possível, mantendo o respeito e tentando explicar que apenas não estava mais dando certo. E foi a melhor coisa que fiz por mim.

Enfim, o filósofo conclui:

Se o amigo está além de correção é aceitável acabar com a amizade.

Nunca será fácil se desfazer de alguém, nem mesmo quando esse alguém te der todos os motivos para isso, mas as vezes é necessário. Nem todas as relações devem para durar para sempre, principalmente aquelas que não fazem mais sentido quando se pensa no que uma amizade deve ser.

Aproveite esse começo de ano para se dar uma chance de viver melhor. Isso não é um incentivo para que você passe a descartar pessoas, apenas para que aprenda a redirecionar seu afeto para quem o merece, quem verdadeiramente te valoriza. Saiba respeitar os seus limites. Tire as pessoas tóxicas da sua vida e dê valor as que te fazem bem, ou pelo menos àquelas não te fazem mal.

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